13 Janeiro 2023
Considerando-se o novo povo eleito, a Igreja cristã retoma todos os atributos do sistema hierárquico que governava o povo judeu: a aparição de uma casta sacerdotal superior, que se considera sagrada (isto é, em relação com Deus) e que detém o poder sobre o povo.
A reflexão é de Michel Bouvard, músico francês, organista titular da Basílica de Saint-Sernin, em Toulouse, e ex-professor de órgão do Conservatório de Paris, de 1995 a 2021. O artigo foi publicado em Saintmerry-hors-les-murs.com, 25-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Cristo veio para anunciar a boa notícia, e o diabo fez dela uma religião” . [1]
A César o que é de César. Comecemos, então, pela carta de Francisco ao Povo de Deus: “Toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas. (...) O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo”.
Essa carta é de abril de 2018. Dois anos depois, o relatório da Ciase (Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja, na sigla em francês) apresentava a visão que todos os católicos temiam sobre a situação que os abusos sexuais ou espirituais causavam.
Estamos no fim de 2022, quatro anos após a publicação dessa carta. O que foi decidido, além das denúncias, para pôr fim ao clericalismo? Nada, desesperadamente nada.
Para bem compreender o clericalismo e por que é e será difícil – provavelmente impossível – livrar-se dele, é preciso voltar às suas origens e compreender por que o clericalismo hoje faz parte do “sistema” católico.
O clericalismo aparece nos séculos II e III, baseia-se na teologia da substituição que “defende que, levando em conta o não reconhecimento de Jesus como Messias e da culpabilidade dos judeus em sua execução na cruz, o povo da promessa e da antiga aliança seriam rejeitados por Deus. Ao revogar a promessa e a aliança, Deus substituiria o antigo Israel (vetus Israel) por um novo Israel (verus Israel, o Israel autêntico), por meio de uma ‘nova’ aliança e uma reformulação da promessa”. [2]
Considerando-se o novo povo eleito, a Igreja cristã retoma todos os atributos do sistema hierárquico que governava o povo judeu: a aparição de uma casta sacerdotal superior, que se considera sagrada (isto é, em relação com Deus) e que detém o poder sobre o povo.
Essa evolução da Igreja e o nascimento do clericalismo introduzem mudanças fundamentais que são implementadas nos primeiros concílios (Niceia em 325 e primeiro concílio de Constantinopla em 381), em relação à vontade afirmada de Constantino e de seus sucessores de se basearem na moral força constituída pela Igreja nascente. Esses desvios – porque se trata precisamente de desvios em relação à mensagem evangélica – sairão fortalecidas pela Contrarreforma (Concílio de Trento, em 1542).
A encíclica Vehementer nos, do Papa Pio X, em fevereiro de 1906, é uma boa ilustração disso: “A Igreja é, por sua natureza, uma sociedade desigual, ou seja, uma sociedade formada por duas categorias de pessoas: os Pastores e o Rebanho, aqueles que ocupam um grau entre os da hierarquia e a multidão dos fiéis. E essas categorias são tão claramente distintas umas das outras que somente no corpo pastoral é que residem o direito e a autoridade necessários para promover e orientar todos os membros para as finalidades sociais; e a multidão não tem outro dever senão deixar-se guiar e seguir, como um dócil rebanho, os seus pastores”.
Essa encíclica parece de outro tempo, mas parece ter inspirado a Lumen gentium, que é de 1964 (Vaticano II). O fato de que essas noções foram combatidas e denunciadas por Jesus nos Evangelhos nunca preocupou a Igreja. “Nem Jesus nem nenhum dos 12 apóstolos são apresentados como padres, muito menos referidos ao sistema hierárquico do templo. E, no seguimento de Jesus, ninguém assume a função de controlador da religião”. [3]
Eis um trecho da Lumen gentium de 1964: “O sacerdote ministerial, pelo seu poder sagrado, forma e conduz o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo”.
É surpreendente que essa noção de sagrado ou, melhor, de poder sagrado, ainda seja mantida em um documento fundamental do Concílio Vaticano II, embora se saiba que tanto a noção quanto o termo “sagrado” absolutamente não aparecem nos Evangelhos. Pode-se pensar também que Jesus denunciou essa noção: os três Evangelhos sinóticos (Mt 27,51; Mc 15,38; Lc 23,45) evocam o rasgo do véu do templo, o mais sagrado dos lugares sagrados, em concomitância com a morte de Jesus. Será que eles não querem dizer que o advento de Jesus significa o fim do sagrado e o chamado à santidade?
O Evangelho, do início ao fim, é o relato sobre um homem, Jesus, encarnação de Deus entre os homens e as mulheres para cuidar do irmão e lhe devolver a sua dignidade.
“Sei que tu és o santo de Deus”, grita o primeiro endemoninhado que Jesus cura (Mc 1,24). Outra interpretação do rasgo do véu do templo – lembremos que somente o Sumo Sacerdote estava autorizado a entrar no Santo dos Santos (o coração do Templo de Jerusalém) no dia da Páscoa judaica para honrar a Deus – é que Deus, por meio de seu filho Jesus, agora está acessível a qualquer pessoa e não precisamos de nenhum intermediário para acessar os recursos do divino.
Alguns autores ilustraram isso particularmente bem. Citemos Agostinho: “O divino é mais íntimo a mim do que eu mesmo”. Ou Maurice Zundel: “O sentido da nossa vida é salvar a Deus em nós. Somos habitados por uma presença, a vida continua mediante o nosso sim”. Em tal concepção da fé, não há necessidade de nenhum intermediário sagrado entre Deus e nós.
Por fim, citemos Mateus no capítulo 20, que gostaríamos que fosse meditado pela nossa hierarquia eclesial: “Quem de vocês quiser ser grande deve tornar-se o servidor de vocês; e quem de vocês quiser ser o primeiro deverá tornar-se servo de vocês. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos”.
Essa noção está muito presente nos ritos judaicos e é constantemente criticada por Jesus nos Evangelhos. As referências são muitas. A noção de puro-impuro que reapareceu na Igreja é o ponto de partida:
- da segregação entre homens e mulheres, já que a mulher, assim como em muitas religiões, é o ser impuro (menstruação);
- da justificação do celibato: para se tornar sagrado, o homem deve se abster de todo contato sexual com a mulher; o sagrado torna-se, de alguma forma, a contrapartida do celibato; como as noções de celibato e de sagrado estão ligadas, é difícil retroceder, daí o impasse atual e a impossibilidade teológica de autorizar o casamento dos padres ou de ordenar homens casados (e menos ainda mulheres!).
Conhecemos todas as expressões: “renovar o sacrifício de Cristo”, “Cristo se sacrificou por nós como o cordeiro”, e encontramos várias delas no texto da consagração (“que este sacrifício seja aceito por Deus Pai todo-poderoso”). O quadro de Jan Van Eyck, que pode ser admirado na Catedral de Ghent, é uma boa ilustração disso:
Van Eyck, “A adoração do Cordeiro místico” (painel central), 1432, Catedral de Saint-Bavon, Ghent
“Confirmando contra Lutero o caráter sacrificial da missa, a doutrina dos sacramentos, especialmente a transubstanciação eucarística do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo e a necessidade de ela ser celebrada por um padre etc., o Concílio de Trento consolida o sistema hierárquico clerical e a separação dos clérigos e dos leigos: é impossível para o simples fiel entrar em contato com o divino sem passar pela mediação dos padres-sacrificadores”. [4]
A nova visão da eucaristia se inscreve na lógica e na linha das noções anteriores: primado do sagrado (altar), do poder (só o padre é autorizado a celebrar), da noção de sacrifício, da noção de puro-impuro.
Porém, nas primeiras comunidades cristãs, nunca houve distinção entre padres e leigos, e a partilha do pão era feita durante as celebrações domésticas “em memória dele” em espaços profanos (casas).
Eis o primeiro relato da instituição da eucaristia segundo São Paulo (1Cor 11), que enfatiza o aspecto fraterno da refeição. Nela não se encontra nenhuma referência a noções de sagrado ou de sacrifício.
Essa visão da eucaristia desemboca em práticas que, para muitos, parecem extravagantes, como “coisificar” a Deus e trancá-lo em uma caixa (sacrário), ou pretender manipular Deus pedindo-lhe que desça sobre o altar... Na teologia católica, os nossos brâmanes são considerados, em virtude de sua ordenação, “alter Christus”.
Alguns, como o cardeal Sarah, coautor de um livro com o cardeal Ratzinger intitulado “Do profundo de nossos corações” (2020), e que não duvidam de nada, não hesitam até em promover o padre “ipse Christus”, isto é, Cristo mesmo. Essas considerações servem também para justificar o celibato dos padres.
Um dano colateral da teologia da substituição e de suas insinuações é evidentemente o antijudaísmo e o antissemitismo que ela acarretou. Foi preciso esperar o Vaticano II e a declaração Nostra aetate para mudar a posição da Igreja sobre o assunto, cujas consequências ao longo dos séculos causaram milhões de mortes.
Chegamos assim à situação atual, àquilo que a originou, e que muitos católicos chamam de “a Tradição”. Faz-nos sorrir pensar que, quando os tradicionalistas se referem à Tradição, esta nunca remonta aos primeiros séculos, mas, dependendo do caso, ao século XVI, com a implementação da autoridade da Contrarreforma, ou ao século XIX, depois do Iluminismo e da Revolução Francesa, quando a Igreja quis afirmar a própria autoridade sobre as consciências e se declarou infalível! [5]
Notemos que não há nada de novo debaixo do sol. Já no Antigo Testamento, o profetismo não entrava em acordo com a instituição judaica e com seus ritos. Exemplos: Isaías 1,11-15: “Que me interessa a quantidade dos seus sacrifícios? – diz o Senhor. Estou farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos. (...) Quando vocês erguem para mim as mãos, eu desvio o meu olhar; ainda que multipliquem as orações, eu não escutarei”.
E ainda: Isaías 58,1-12, Jeremias 7,1-15, Amós 5,21-24 ou Miqueias 6,6-8: “Como me apresentarei ao Senhor? Como é que eu vou me ajoelhar diante do Deus das alturas? Irei a ele com holocaustos, levando bezerros de um ano? Será que milhares de carneiros ou a oferta de rios de azeite agradarão ao Senhor? Ou devo sacrificar o meu filho mais velho para pagar os meus erros, sacrificar o fruto das minhas entranhas para cobrir o meu pecado? Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você: praticar o direito, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o seu Deus”.
Sem esquecer as palavras que o próprio Jesus dirige aos fariseus (Lc 11,46): “Ai de vocês também, doutores da Lei! Porque vocês impõem sobre os homens cargas insuportáveis e vocês mesmos não tocam essas cargas nem com um só dedo”. Ou as duras palavras de Jesus referidas por Mateus no capítulo 25 e que recordam as de Miqueias: “Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar. (...) Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram”.
Mas essa oposição de sempre entre profetismo e autoridade institucional me parece ter poucas chances de encontrar uma solução favorável atualmente. A extrema direita e uma parte da direita católica (incluindo, em seu tempo, os maurassianos, embora fossem agnósticos ou ateus!) perceberam todo o interesse que a instituição Igreja pode lhes oferecer para ter poder sobre as consciências: a proteção da identidade cristã diante do crescimento do Islã, as questões éticas (casamento para todos, aborto, gravidez medicamente assistida, gestação para outrem, fim da vida) e respeito pelos bons costumes etc.
Recordemos que 37% dos católicos praticantes na França votaram em Marine Le Pen e em Eric Zemmour, um tipo de voto que, antigamente, a Conferência Episcopal Francesa e as grandes figuras da Igreja condenavam sem ambiguidade. Para dizer claramente, a Igreja é percebida pela grande maioria de seus membros, padres e bispos em primeiro lugar, como o último bastião contra a “decadência de tudo”, e, portanto, para a Igreja, não é o momento de abandonar um poder e o fundamento desse poder, o sagrado, sem o qual ela perderia toda autoridade que acredita necessitar para cumprir seu próprio papel.
E se o Papa Francisco não faz nada, é porque ele prefere o cisma silencioso daqueles que vão embora na ponta dos pés ao cisma brutal de uma ruptura com aqueles que já constituem as forças vivas da instituição.
Se assim for, a Igreja corre o risco de se tornar uma seita identitária. Joseph Moingt expressa claramente o impasse em que a Igreja se encontra agora: “Enquanto a sociedade e a Igreja funcionaram de acordo com o exercício mundano do poder, a comunicação interna e externa da Igreja funcionou bem. Em um mundo quase totalmente cristão, todos ouviam esse anúncio. Mas, em um mundo ocidental democratizado e que saiu da religião, o funcionamento da autoridade na Igreja parece desigual, e a Palavra não é mais anunciada ao mundo, porque o modelo religioso que a sustenta se esgotou”. [6] Em outras palavras, o clericalismo funcionava muito bem nos tempos da cristandade, mas absolutamente não funciona hoje.
O termo “seita” utilizado aqui pode parecer imprudente e abusivo, mas é próprio de uma seita se reduzir a nada, ter uma linguagem compreensível apenas por ela mesma e que deixa a sociedade totalmente indiferente. A encarnação no mundo, que era a essência do cristianismo, simplesmente desapareceu.
O que aconteceu com o profetismo da mensagem do Evangelho? Não querendo pôr o clericalismo novamente em discussão, a Igreja Católica terá a pesada responsabilidade de o ter reduzido a nada. Lembremos a citação de André Gouzes: “Se não nos tornarmos como os primeiros cristãos, seremos os últimos”. [7]
1. Jacques Ellul.
2. Loïc de Kerimel, Sortir du cléricalisme, prefácio de Jean-Louis Schlegel (Ed. Le Seuil, 2020, p. 125).
3. Ibid., p. 45.
4. Ibid., p. 58. A noção de sacrifício também é discutida no capítulo 6 do livro.
5. No Concílio Vaticano I, em 1870, depois que Garibaldi reduziu os Estados Pontifícios e o poder temporal da Igreja .
6. Joseph Moingt, Dieu qui vient à l'homme (Ed. Le Cerf, 2002).
7. Citado por Anne Soupa e Christine Pedotti em seu primeiro livro: “Espérez ! Manifeste pour la renaissance du christianisme” (Ed. Albin Michel, 2022).
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O clericalismo vai enterrar o catolicismo? Artigo de Michel Bouvard - Instituto Humanitas Unisinos - IHU